Quando Dona Hilda fala
A pele morena, os cabelos longos cinzentos sempre presos num coque, os olhos verdes miúdos no rosto duro. As mãos fortes de quem trabalhou a vida inteira. O tempero inigualável da comida. A disposição de comandar a casa, sendo a primeira a acordar todos os dias. A voz que manda na família Santos.
A figura de Dona Hilda se desenha na minha mente como a da mulher mais corajosa que conheço. Com mania de misturar literatura em tudo, eu penso nela como uma Ana Terra nordestina. E por falar em O Tempo e o Vento, nos meus mais otimistas sonhos de escrita me imagino algum dia no futuro como Floriano Cambará voltando dois séculos no passado para escrever a história de sua família, começando por aquela ancestral longínqua que deu origem a toda uma saga. Eu escreveria com orgulho a história da família Santos a partir do ponto de vista de Dona Hilda. Penso que a vida dela, por si só, renderia um romance dos bons. E o melhor: feito inteiramente de realidade.
Semestre passado, nas aulas de Jornalismo Literário, ouvi que é frequente os estudantes quererem escrever os perfis de seus parentes mais velhos, como avós. Sofrendo durante semanas com a falta de uma ideia sobre o que ou quem perfilar, quase me rendi à tendência de tantos veteranos e veteranas que experimentaram o Novo Jornalismo. Um perfil da Vó Hilda! Não o fiz. Mas ainda fantasio a escrita de uma biografia dessa mulher. Forte. Rija.
O que conheço da história de Dona Hilda é baseado nos pedaços de seu passado que ela revela periodicamente, quando deseja ensinar aos netos e bisnetos alguma lição prática sobre a vida. Quando criança eu a temia. Aquela mulher que não parava quieta e reclamava da correria dos netos pela casa me assustava, me parecia brava e eu me escondia dela e evitava lhe dirigir a palavra, exceto na hora de pedir a bênção. Ai do neto que ousasse ir embora sem pedi-la! Hoje, me sento à longa mesa da cozinha, debaixo da qual eu me escondia no pique-esconde quando criança, só para ouvi-la falar. Quando Dona Hilda fala, sou mais atenta que em aulas da Universidade. O que me lembra do quanto estamos distantes uma da outra: Dona Hilda é uma mulher analfabeta, que apenas aprendeu os números a fim de poder telefonar para os filhos; duas gerações depois, sua neta estuda Jornalismo numa Universidade Federal. A vida, fantástica, permitiu que sua prole não vivesse as mesmas agruras que ela.
Tento imaginar toda a trajetória de Dona Hilda desde o sertão da Bahia até o Distrito Federal. Uma menina criada em casas de outras pessoas, trabalhando em troca de comida. Sonhando ter a própria cama, não mais dormir no chão. Proibida de aprender as letras, para que não escrevesse cartas para namorados. Descobri hoje mais um pedaço da história. Um pau-de-arara, uma ponte que se arrebentou, a queda numa lagoa. Hilda Bertolino tinha 14 anos. A cronologia da história me falta. Também sei que aos 16, já casada com meu avô e grávida do primeiro filho, Hilda morava na favela da Rocinha no Rio de Janeiro. Mas tia Cleide, a filha mais velha, nasceria já no Gama, Distrto Federal.
São tantas as histórias dessa mulher que me confundo ao contá-las de acordo com o que ouvi. Ela me contou como, após uma chuva que destelhou seu barraco, correu com os filhos menores para a casa de uma vizinha. Os quatro mais velhos: tia Cleide, tia Nice e os gêmeos Cosme e Damião que nunca conheci. Penso na força dessa mulher ao visitar um dos filhos pequenos no hospital de Taguatinga, internado com meningite. De voltar a pé e ao chegar em casa receber a notícia da morte do filho.
Dona Hilda esteve grávida por muitas vezes. Dezessete, segundo a minha tia mais velha. Houve os filhos que morreram ainda na infância e os que nem nasceram. Nove chegaram à vida adulta. Sete ainda vivem. Trabalharam. Prosperaram. Tornaram confortável a casa construída em partes pelo meu avô ao longo do tempo, no lote dado pelo governo que já teve plantado até pé de eucalipto. Fizeram crescer a família: quinze netos; cinco bisnetos. Difícil fazer a família inteira caber numa foto.
Com mais de setenta anos, Dona Hilda ainda acorda às seis da manhã todos os dias e é a pessoa idosa mais ativa e saudável que conheço. Faz seu café preto, varre a casa. No altar numa prateleira entre seu quarto e a sala, sempre há uma vela acesa para Nossa Senhora Aparecida. Quando tem vontade, minha avó entra num ônibus e descamba para a chácara da família em Planaltina, onde tem sua própria casa a fim de evitar contato com meu avô; já lhe basta manter o casamento, que para gente da idade dela deve durar a vida inteira. Dona Hilda é simples. Tenho uma lembrança conservada na memória de um dia longínquo da minha infância, quando depois do almoço ela declarou que só queria sentar na frente da TV mais tarde e assistir ao filme do Zorro. Hoje me parece que naquele dia, bastava aquilo para fazê-la feliz.
Um abismo me separa de Dona Hilda. Essa mulher antiga, que não ensinou às filhas sobre menstruação por vergonha e que viverá com meu avô até que a morte os separe, que não vê utilidade em computadores e celulares. Tão distante de mim, a neta que anda com livros por baixo do braço, que usa um pouco exageradamente o celular; a neta que se declara feminista e afirma que não vai ter filhos. Parece que vivemos em tempos diferentes. Consequência natural, eu penso, da mudança de gerações.
E como eu a admiro! Quando Dona Hilda fala, sento e ouço. Penso no quanto viveu essa mulher até estar onde está agora, até ter a vida que tem. Não estou acima dela, muito pelo contrário. Porque se eu, tão jovem e inexperiente, faço graduação numa universidade, ela é doutora na vida.
Deixei de lado a ideia do perfil de Dona Hilda. Acho, também, que essa mulher fantástica não caberia nas meras seis páginas de que eu dispunha. Mas vejo que não abandonei de todo a ideia de escrever sobre ela — tanto é que você está lendo essa crônica. Algum dia, quem sabe eu retome a ideia.
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