Por que sorrio quando vejo um ipê florido

Lethycia Dias
5 min readSep 18, 2020

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Foto feita no Campus Samambaia da Universidade Federal de Goiás | Lethycia Dias, 2017

Cortaram o ipê amarelo do quintal de uma casa por onde eu passo quando preciso ir até o ponto de ônibus. Era uma árvore grande, bonita, no meio de um quintal de terra com uma pequena casa no fundo do lote. Nos dias de agosto e setembro, tornava-se a única coisa bonita numa esquina pouco movimentada de um bairro de periferia. As flores amareladas podiam ser vistas por cima do muro de cimento chapiscado, e a árvore inteira podia ser vista por entre as barras do portão de grade azul desbotada.

Não me lembro há quanto tempo foi cortado. Percebi a falta do ipê outro dia com um espanto de quem já estava acostumada à mesmice da paisagem. Ou quem sabe de quem há muito não tinha a oportunidade de olhar de verdade. Não sei se foi na semana passada, ou no mês passado, ou no ano passado, após a florada. Mas quando percebi, era agosto, e em agosto eu busco pelos ipês e seu vigor colorido por onde passo.

O período que vai julho a outubro é o que eu menos gosto durante o ano. É quando, na Região Centro-Oeste, o frio do inverno brasileiro diminui aos poucos e os dias começam a esquentar e ficar cada vez mais secos. Aqui em casa, vamos modificando a rotina. Para dormir, substituímos os cobertores por lençóis; para passar o dia, mantemos o climatizador de ar abastecido com água e ligado desde o início da tarde até o amanhecer. Colocamos água da geladeira nas tigelas dos gatos. É quando a temperatura está sempre acima dos 30 graus Celsius e tudo o que desejo ao longo do dia é tomar um banho frio antes de deitar. A ideia de descansar, porém, é uma ilusão, porque o calor não me deixa dormir por uma noite inteira.

É também quando os dias parecem adquirir um ritmo mais lento, como se tudo fosse cansativo. É abrir a porta de casa e sentir o bafo quente do dia lá fora. É sentir que o sol está quente antes das nove horas da manhã. É ver o céu adquirir um tom de azul sem graça, sem brilho, quase cinzento, de tanta fumaça que se espalha dos incêndios constantes à beira das rodovias e nos matagais dos bairros de periferia. É ter a sensação de respirar uma mistura de poeira e fumaça, que parece nunca se extinguir. E é também perceber que os dias seguirão assim, um após o outro, numa preguiça mole, por aproximadamente dois meses, até que caiam as primeiras chuvas da primavera.

Em compensação, este período que me causa tanto desconforto também me dá uma das coisas de que eu mais gosto: poder admirar os ipês floridos. Primeiro vêm o roxo, depois o amarelo, em seguida o rosa e, por fim, o branco. Meu favorito é o amarelo. Já tentei várias vezes escrever sobre isso. Coloquei ipês amarelos em contos, tentei escrever poemas, fiz e postei inúmeras fotos. Admito um sentimentalismo meio bobo com os ipês. Uma emoção que vem não sei de onde quando vejo um. Que me faz sorrir sem motivo, acreditar que as coisas vão dar certo e ser mais bonitas.

Gosto de acreditar que meu amor pelos ipês representa minha identificação com o Centro-Oeste brasileiro, meu orgulho de ter nascido aqui. Que os ipês, em si, seriam um símbolo da Região Centro-Oeste, embora eu saiba que eles estão em todo o Brasil. Sei que é uma árvore representativa do Cerrado. E é na imagem do Cerrado e dos ipês floridos que eu me encontro no Brasil. A primeira vez que compreendi isso foi quando fiz minha primeira viagem de avião, de Brasília a Curitiba, e vi o Cerrado de cima pela janela do avião. Daí, saiu um poema, o melhor que eu podia escrever aos 13 anos. Pensando nele, percebo que muito do que estou tentando expressar hoje já estava lá, naqueles versos ingênuos.

Pensar em ipês me faz lembrar de quando ia com minha mãe e meus irmãos à chácara do meu avô, em Planaltina, e da mistura das cores marrom e verde que margeavam a estrada de terra até a entrada da propriedade. O calor e a poeira do caminho. A nuvem de pó que os carros faziam. A descida até a cachoeira, e a oportunidade de observar as plantas e flores no caminho. As caliandras vermelhas que eu via no meio do mato, pequenos pontos de cor que me atraíam a visão. A forma como tudo adquiria um tom mais vivo e bonito com as primeiras chuvas depois da temporada de seca.

Outra lembrança que sempre vem é a de andar de ônibus numa tarde de agosto ou setembro, e de ver, em algum lugar em meio aos prédios de Goiânia, na calçada de uma avenida movimentada, um ipê amarelo florido. E de pensar que podia ter esperança de dias melhores. Que meus planos para o futuro podiam dar certo. Que podia acreditar. O ipê não tinha nada a ver com isso — eu tinha a expectativa de começar em um emprego depois de um bom tempo procurando — mas vê-lo naquele momento tornou o meu dia todo especial.

Talvez o que eu mais goste nos ipês seja a sua característica de florescer quando o clima é mais duro no ambiente em que eles nascem. Quando o solo e o ar são mais secos, quando o sol é mais quente, quando os dias sem chuva na Região Centro-Oeste se acumulam e chegam a 100 ou 120. Certa vez, li que a florada durante a seca era uma espécie de estratégia de sobrevivência da planta, para garantir que pudesse se multiplicar o máximo possível, atraindo insetos para espalhar o pólen das flores no momento mais crítico para a vida no Cerrado.

Acho que essa força, essa busca por renovação é o que eu amo nos ipês. A ideia de que é possível se recuperar de um período ruim, renascer com mais força e mais beleza. Esse meu amor pode parecer uma coisa batida, repetida, porque afinal, todos parecem achar os ipês lindos. Pode parecer uma ideia sentimental e supersticiosa. Mas os meus dias sempre ficam melhores quando vejo um.

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Lethycia Dias
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Written by Lethycia Dias

Jornalista, leitora, escritora, viciada em café e humana de estimação de dois gatos. Autora de “Mesmo que eu vá embora” e outros contos.