Para quando dá vontade

Lethycia Dias
5 min readJun 10, 2019

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Fui a inúmeras festas juninas ao longo da vida. Do jardim de infância ao fim do ensino médio, foram pelo menos doze anos de vida escolar, com uma festa por ano para comparecer. Fora as festas dadas por pessoas sortudas nascidas no mês de junho, que decidiam comemorar aniversário em forma de festa típica. Ou as festas do time de futebol amador do qual meu pai participa, sempre realizadas na mesma chácara onde ocorrem os jogos, com direito a fogueira das grandes e frio capaz de fazer todo mundo se amontoar em volta do fogo.

Mas sempre houve uma coisa em todas elas: não comer da canjica. Não por não gostar da iguaria que se come de colher, mas em copo: eu adoro. É que ninguém faz canjica igual lá em casa. Não com amendoim torrado e batido no liquidificador, dando aquele sabor especial no meio do leite e do milho.

Quando vou a qualquer festa junina, faço o que aprendi com a minha mãe: me dirijo até a barraca da canjica, e pergunto de que é feita. Geralmente, o olfato me dá a resposta antes mesmo que eu questione alguém: é sempre de coco. E o cheiro quase sempre me repele. Fico naquela vontade, querendo comer, mas sabendo que não vou gostar. Canjica, aliás, é uma das poucas coisas com coco como ingrediente das quais eu não gosto.

Não sei o que leva as pessoas a preferirem o coco, mas suspeito que seja o trabalho a mais exigido pelo amendoim. Eu sei bem. São anos observando a minha mãe realizar todos os passos na preparação da canjica das mulheres da família Santos.

Primeiro, uma panela grossa. Um quilo de amendoim, quase sempre não aproveitado por completo. O fogo aceso. A colher de pau. O calor emanando da panela. O som do amendoim sendo despejado na superfície de ferro. A colher mexendo, mexendo, mexendo, sem parar nenhuma vez porque é preciso torrar por igual. Apagar o fogo. Esperar secar. Descascar os grãos torrados, um por um, para não deixar sobrar nenhuma pele. Bater o amendoim seco no liquidificador, até reduzi-lo a uma mistura de pó e pequenos pedaços restantes, facilmente mastigáveis. Aí sim levar para a panela com o milho de canjica já cozido, o leite comum e o leite condensado.

Fazem essa canjica minha mãe e minhas tias, ensinadas pela minha avó. Não se sabe com quem Dona Hilda aprendeu a receita ou se a inventou sozinha. “Deve ter sido em uma das casas que ela trabalhou”, minha mãe teoriza. Dona Hilda já trabalhou em casa de família. Não me importa muito saber se alguém a ensinou. Por nunca encontrar canjica de amendoim em nenhuma festa junina para a qual compareço, gosto de acreditar que a canjica de amendoim é um segredo de família, embora seja bem possível que eu tenha ido a pouquíssimas festas juninas e que certamente mais pessoas conheçam o “segredo”. E apenas tenham preguiça de prepará-la assim. Ou prefiram mesmo a canjica de coco. Eu não sei.

Mas supondo que a canjica de amendoim seja algo especial na família Santos, um segredo culinário ensinado de mãe para filha, a cada mês de junho me vem à cabeça a sensação de que preciso fazer a minha parte, aprender a receita também. Não para cozinhar para alguém e muito menos para ensinar outra geração da família — porque nada disso faz parte dos meus planos — mas pelo menos para saber fazer a minha própria canjica. Afinal, cozinhar é uma necessidade básica para qualquer pessoa que pretenda ser independente. E se você adora uma comida, e gosta dessa comida preparada de um jeito específico… É melhor aprender!

Assim fica fácil entender a angústia de alguém, nessa família que prepara canjica de uma forma tão específica, que cozinhe mal. E pior: que deteste cozinhar. Eu consigo me virar no fogão, é claro. Sei o básico para uma refeição cotidiana. E já vi ou ajudei minha mãe na cozinha o suficiente para acreditar que sei preparar coisas mais elaboradas. Mas não é uma atividade que me agrada. Nem para a qual eu tenho paciência. Se eu estiver com pressa ou fome, então… esquece!

E como considero a canjica uma coisa elaboradíssima, muito complexa, que leva uma parte inteira do dia para ficar pronta desde o milho colocado no molho até o preenchimento da caneca fumegante, a missão parece ainda maior. Fico então com trabalhos mais simples, como o amendoim doce, uma iguaria junina que aqui em casa comemos até fora de época, e que quando a gente começa a comer, não quer mais parar.

É mais rápido, conta com menos ingredientes, exige menos atenção e trabalho. Uma panela grande, até uma frigideira, uma colher de pau, um quilo de amendoim, açúcar medido na base do olho, água e fogo aceso. Fácil. Só mexer até a água secar, até o amendoim inchar e começar a grudar na panela, até a mistura de água e açúcar se tornar um pó claro pregado às laterais e fundo da panela e ao próprio amendoim, cada vez mais seco. Quando estiver despregado, está pronto.

Mas a emoção, o encanto de preparar amendoim doce está é no grude da água açucarada, na mistura molhada de tom vermelho que se acumula no fundo da panela, que precisa molhar cada grão por igual e é por isso que se necessita mexer mexer mexer. É quando o amendoim ainda está em seu tamanho natural, sem o risco de cair pelas bordas da panela enquanto é jogado de um lado para o outro, mesmo que em movimentos leves. É de sentir o cheiro de coisa úmida e cozida, com alguma coisa de queimado que não chega a ser ruim, e pensar em como aquilo vai se transformar na crosta grossa e doce que a gente nunca quer parar de comer.

O gostoso de preparar amendoim doce é talvez saber que se está cozinhando uma coisa que não é o arroz e feijão de todo dia, que não é a verdura, nem a receita especial do almoço festivo, que não precisa ser feita para impressionar ninguém; é a coisa que se cozinha só porque se gosta, só porque deu vontade.

Vou sair de casa. Não hoje, não amanhã, não semana que vem, mas com certeza algum dia entre daqui a alguns meses e daqui a um ou dois anos. É inevitável. Esse não é o meu lugar. Eu quero mais da vida e do mundo, e para ter isso, geralmente é necessário sair de casa.

Daí me vem um interesse muito grande em aprender a cozinhar coisas que se cozinha porque são gostosas e porque dá vontade. A comida de todo dia cansa. Vem aí uma lista enorme de coisas, entre aquelas que-vi-minha-mãe-fazendo-várias-vezes-e-até-ajudei-bastante e aquelas mais elaboradas, que eu tenho preguiça só de pensar em preparar.

Não foi dessa vez que aprendi a canjica segundo a receita da família. Mas o amendoim doce, pelo menos, está garantido.

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Lethycia Dias
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Written by Lethycia Dias

Jornalista, leitora, escritora, viciada em café e humana de estimação de dois gatos. Autora de “Mesmo que eu vá embora” e outros contos.

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